André Ramos Tavares
O acesso à Justiça e ao Judiciário passa, muitas vezes, pela construção de institutos e instituições cuja finalidade principal é conferir máxima concretude a esse postulado presente nas civilizações mais avançadas. É exatamente neste ponto que surge, no caso brasileiro, a chamada Defensoria Pública.
Trata-se de instituição resultante da engenharia constitucional brasileira, consubstanciada no art. 134 da Constituição. Essa instituição tem, na Constituição, o reconhecimento e proteção das condições e os meios necessários para alcançar seu desiderato. Dentre os mecanismos e movimentos imprescindíveis aos objetivos da Defensoria, que são, em linguagem direta, objetivos constitucionais, encontra-se aautonomia. Ou seja, a autonomia serve à Defensoria como esta deve servir à cidadania, aqui compreendida esta na concepção mais contemporânea de direitos a ter direitos.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal enfrentou duas questões fundamentais sobre a autonomia da Defensoria. A primeira foi decidida nos autos da ADI n. 4163 que questionou o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e o art. 234 da Lei Complmentar n. 988/2006, que atribuíam a obrigação de se firmar convênio de maneira exclusiva com a OAB, ocasião em que a ADI foi conhecida como arguição de descumprimento de preceito fundamental, tendo sido julgada procedente em parte para declarar a ilegitimidade ou não-recepção do artigo 234 e seus parágrafos, da Lei Complementar Estadual Paulista n. 988, de 9 de janeiro de 2006, e declarar constitucional o artigo 109 da Constituição do Estado de São Paulo, desde que interpretado conforme a Constituição, no sentido de apenas autorizar a Defensoria, sem obrigatoriedade nem exclusividade, a celebrar convênio com a OAB-SP.
A segunda questão fundamental enfrentada pelo STF foi decidida nos autos das ações diretas de inconstitucionalidade n. 3965 e n. 4085, propostas diante de dispositivos que subordinavam a estrutura político-organizacional da Defensoria Pública aos Poderes Executivos dos Estados de Minas Gerais e Maranhão, sendo ao final decidido por sua inconstitucionalidade ante a autonomia da Defensoria Pública.
Mas na quadra atual, há ainda ao menos um questionamento fundamental que ameaça travar todo o mecanismo de acesso a cidadania propiciado por instituições próprias, como a Defensoria. Refiro-me à subordinação desta instituição a outra, que embora conte com objetivos próprios ainda que próximos, não são exatamente idênticos. Esse questionamento fundamental foi carreado ao Supremo Tribunal Federal
pela ADI n. 4636 proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face do art. 4º, §6º da Lei Complementar n. 80/94 alterado pela Lei Complementar 132/2009, e que dispõe: “§ 6º A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público”.
É necessário reconhecer que esse dispositivo desvincula a Defensoria Pública da Ordem dos Advogados do Brasil promovendo um movimento emancipatório em relação à OAB, e à necessidade de inscrição no quadro de profissionais desta última, para fins de concessão de capacidade postulatória aos integrantes da Defensoria Pública.
A opção normativa acaba por consolidar e efetivar a Constituição do Brasil, no que tange ao conteúdo, alcance e teleologia do art. 134. Trata-se, pois, mais do que uma opção legal, de uma diretriz constitucional.
Isso se justifica pelo enquadramento da Defensoria Pública como uma Instituição constitucional desvinculada dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o que pode gerar dificuldades de compreensão para aqueles ainda atrelados a certos modelo teóricos de Estado clássico.
A exigência de inscrição na OAB submete os membros das Defensorias Públicas à fiscalização dessa Instituição. Entretanto, além da Defensoria Pública ser instituição constitucionalmente autônoma apresenta também seus próprios meios de autotutela, que visam a resguardar não apenas sua autonomia como igualmente a sua atuação conforme às exigências da sociedade. Em relação ao último aspecto, tem-se que a LC n. 80/1994 já prevê mecanismos adequados à Defensoria Pública, enquanto Instituição estatal, para qualificar, preparar, organizar e, igualmente, punir disciplinarmente os seus integrantes. Desta forma, a afirmação de que a OAB “deveria” qualificar e fiscalizar os profissionais Defensores Públicos não resiste à análise do pressuposto desta discussão (autonomia constitucional da Defensoria Pública), nem à legislação específica, que já contempla modelo disciplinar próprio, consentâneo com o referido pressuposto constitucional (atrelado à defesa da cidadania brasileira).
A relação entre essas duas instituições que exercem função essencial à Justiça em igualdade de status constitucional é forçosamente horizontal, e não vertical, de subordinação. A inclusão de uma em outra (total ou parcialmente), redução (por dependência de uma à outra, seja dependência total ou parcial) são incompreensíveis à luz da Constituição em vigor. Ou seja, não há sobreposição, hierarquia ou sobre-determinação de uma Instituição sobre a outra. A Constituição brasileira além de dispor assim em seu art. 134, ilustra essa relação ao intitular o Capítulo correspondente como
“Da Advocacia e da Defensoria Pública”, ocasião em que a utilização do conjuntivo “e”, explicita a horizontalidade da relação entre ambas as instituições presente no bojo dessa mesma Constituição.
A orientação da Lei Complementar n. 80/94, especificamente diante do art. 4º, §6º com a redação dada pela Lei Complementar n. 132/2009, finda por reforçar autonomia que traduz mera reafirmação do contexto constitucional em que se situa essa Instituição, e decorre da especial natureza do órgão, no âmbito do Poder Público, um ente verdadeiramente autônomo, conforme reconhece a Constituição brasileira, a serviço da cidadania.
FONTE: Carta Forense